Cardeal Saraiva e a retórica poética da História


Francisco Manuel Justiniano Saraiva, mais tarde Fr. Francisco de São Luiz, depois conhecido como Cardeal Saraiva, nasceu em Ponte de Lima, a 26.1.1766.

Segundo Jofre de Lima, entrou como noviço no Mosteiro de S. Martinho de Tibães, em Braga, aos 14 anos de idade (6.4.1780). Tornou-se monge professo da Congregação de S. Bento de Portugal, escolhendo o nome de frei Francisco de São Luís Saraiva (29.1.1782). Estudou Humanidades no Colégio beneditino de S.to André de Rendufe (Amares), no de N.ª Sr.ª da Estrela (Lisboa), no de S. Bento de Coimbra e, finalmente, fez-se aluno da Faculdade de Teologia da Universidade de Coimbra, atingindo o grau de Doutor em Julho de 1791. Tornou-se membro da Academia Real das Ciências em 1794. Na hierarquia eclesiástica subiu o mais alto que era possível em Portugal (a “púrpura cardinalícia” (Coelho, 1878 p. 3)). Da longa e rica biografia intelectual é de ressaltar a função de cronista-mor da Ordem, que lhe deu acesso às livrarias e arquivos onde pôde consultar e copiar todos os documentos e livros dos respectivos mosteiros. Ocupou-se também, como Guarda-mor, dos Arquivos da Torre do Tombo. Usou bem o acesso que teve a todo esse património bibliográfico e documental.

Prelado liberal, empenhado (já tinha resistido às invasões francesas), membro da Comissão de Redação das bases da Constituição, escreveu um esboço de Constituição (1821) no qual D. Pedro IV (I do Brasil) se baseou para redigir a de 1827. Foi também dirigente do Estado-maior do Grande Oriente Lusitano. Entre os muitos e altos cargos que desempenhou encontra-se o de Deputado às Cortes em vários mandatos, incluindo àquelas Cortes onde se terá encontrado com o nosso Manuel Patrício Correia de Castro e com o brasileiro Domingos Borges de Barros. Outro cargo importante para nós foi o de co-fundador da Associação Marítima e Colonial, de que veio a editar os respectivos Anais (a partir de 1841), onde colaborou. A importância do cargo para nós deve-se aos contactos estabelecidos aí, muito provavelmente, com pessoas ligadas às colónias e, em particular, com o também sócio Joaquim António de Carvalho e Menezes. Morreu a 7.5.1845, às 6h da manhã, em Lisboa, estando enterrado na Igreja de S. Vicente de Fora.

O seu sobrinho, Conselheiro António Correia Caldeira, iniciou a publicação das Obras completas em 1855. O tomo X das Obras completas do Cardeal Saraiva (Saraiva, 1872-1883), reunidas em Lisboa pela Imprensa Nacional, encontrava-se em Benguela também (na Biblioteca da Administração Municipal) e particularmente nos interessa para o caso. Debruço-me, portanto, sobre ele.

O Tomo começa pela “Comparação da História de D. João de Castro por Jacinto Freire de Andrade, e da vida de D. Paulo de Lima por Diogo do Couto”. É todo um programa, como veremos e parece que desde o início se destinava a sê-lo. Por esse motivo nos concentramos nele.

Resultou a “Comparação” histórica de uma resposta à tese que a Academia Real das Ciências “havia proposto no seu programa de 1792” (Coelho, 1878 p. 6). Surge aí, mesmo no incipit, uma definição genérica de Literatura que, segundo Aguiar e Silva, ocupa os séculos XVI a XVIII: “um dos ramos mais proveitosos e respeitáveis da literatura é, sem contradição alguma, a história”. Um dos aspetos a considerar é que “ela instrui e deleita ao mesmo tempo”. Não se esquece também, nessa página inicial (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 5), de que ela é uma narração (refere que tudo entra na sua narração).

Desenha, a pp. 6-7, uma leitura também estilística desse ramo da literatura:
[os gregos] deverão grande parte da sua polícia[1] aos factos consignados na história, que tendo princípio na tradição, e recebendo da poesia infinitas modificações para servir à instrução e à índole, ainda que em prejuízo da verdade, começou a mostrar-se nos escritos do Heródoto com muita parte daquela veneranda dignidade com que ao depois resplandeceu nas obras de Tucídides e Xenofonte; vindo pois a narrar as grandes ações dos Romanos [... povo que] se elevou com toda a majestade na facúndia dos Lívios, na concisão dos Salústios, até chegar ao elegantíssimo laconismo de Tácito, do profundo, do virtuoso Tácito, do mais respeitável de todos os historiadores da antiguidade.
Nas pp. 8-9 também se concentra no estilo de Diogo do Couto (1542-1616): 
a sua narração é nobre, simples e elegante; é excelente em descrever costumes, o que a faz interessante [note-se que este critério é recorrente nele e em Villemain]. A verdade e a clareza são os seus carateres principais: é notável a variedade que se apresenta naquele imenso transunto, onde a disposição dos factos, a velocidade da narrativa, as reflexões politicas e morais, a generosa liberdade com que declama contra os vícios e louva as ações boas; a prodigiosa diversidade de descrições de combates terrestres e navais, de tempestades, de regiões, de portos, de cidades, tudo traçado com cores tão fortes, tão vivas, tão próprias, além de outras muitas virtudes a fazem digna de eterna recomendação.
Continua, ainda na p. 9:
o seu estilo é corrente e elegante; e tem de quando em quando uma negligência amável, que violando algumas vezes as regras do idioma, faz desculpar o erro, ou por melhor dizer, tais defeitos são como umas sombras que fazem realçar grandes massas de tinta, onde resplandecem infinitas belezas de que esta grande história se acha inundada. A força da dicção, o calor e o movimento do estilo são dignos da mais recomendável atenção, e fazem a leitura interessante e nunca fastidiosa. A tal ponto de mágica chega esta virtude, e tanto se eleva, especialmente na defesa e interrogatório de Lopo Vaz de Sampaio em plena Relação, na presença de el-Rei D. João III, que o leitor concebe o maior e mais vivo interesse; e é tão original este lance, que eu não me acordo de outro igual nas histórias antigas, nem nas modernas. Além da singular destreza com que traçava as pinturas do terrível, como se vêm em todas as descrições de batalhas, de naufrágios, de tempestades, teve um especial talento para descrever com decência usos e costumes particulares [...].
Nesta longa citação, que foi longa para resumir a poética historiográfica do autor, observa-se facilmente a preocupação estética e retórica, estilística também. Ela foi similar em muitos pontos à de Villemain, incluindo nas pontes que faz entre a historiografia anterior e os valores poéticos do Romantismo (o acento no vívido, o “calor”, a diversidade, a capacidade de sugestão, a genuinidade ou naturalidade da língua).

Não se pense num elogio acrítico, porém. Na p. 10 dá mostras de isenção, reconhecendo-lhe os defeitos:
algumas vezes interrompe a velocidade da narração com episódios desnecessários. Atribui comummente a milagre acontecimentos, cujas causas naturais eram visíveis e notórias ao entendimento mais preocupado.
Nas pp. 10-11 fala do “historiador Andrade” (refere-se a Jacinto Freire de Andrade). Diz que 
a história que compôs da vida do insigne D. João de Castro tem entre nós a mesma reputação que em todos os tempos mereceu a de Alexandre, composta por Quinto Cúrcio, e a de Carlos XII, escrita por Voltaire.
Continua na p. 11:
a sublimidade e a elegância são os principais carateres do escritor Andrade [note-se a mudança de “historiador” para “escritor”], que elevando-se à dignidade do assunto, traça com as cores mais vivas e acertadas a grande alma de um varão mais fácil de louvar que de imitar.

Repare-se na repetida valoração da vivacidade e do colorido, que, mais uma vez, acentua valores estéticos e retóricos recorrentes em Villemain e, muito mais tarde, no primeiro Sampaio Bruno, já pós-romântico e ainda algo naturalista. Acrescenta-lhes uma referência intensa à velocidade, um tópico tendencialmente contemporâneo, propício num mundo em aceleração, sendo embora reconhecida essa virtude estética pela retórica antiga no que diz respeito aos episódios que a pediam. Tudo isso o aproxima também do Romantismo. Um adjetivo, porém, assinala a necessária cautela, que nem todos os românticos respeitaram: as “cores mais vivas” serão também a mais “acertadas”, ou seja, apropriadas. É preciso que a razão regule o fluxo da imaginação.

Traça o plano do seu ensaio logo a seguir:
postos estes índices caraterísticos, antes que nos engolfemos[2] em observações subalternas, teçamos o paralelo comparativo dos assuntos destes dois tão célebres escritos e sua unidade, da sua extensão, da grandeza e dignidade moral dos seus heróis, do interesse, dos carateres, das sentenças, da sua moral, da sua utilidade, o que formará todo o corpo da primeira parte; ficando reservado para a segunda as virtudes da narração quanto à disposição dos factos e velocidade de os narrar; e as do estilo, quanto às descrições, quanto à pureza, elegância e perspicuidade.
Tudo se guia por critérios estéticos e retóricos, como se vê. Mas acompanhemos o sábio:

No início do Cp. I da parte I («do assunto destes dois célebres escritos e da sua unidade»), julgará as duas obras comparadas em função da escolha do “assunto” e, pelo valor da personagem de Andrade, ele ficou melhor que Diogo do Couto. Aliás, frei Francisco de São Luiz incumbiu-se da estimulante tarefa de mostrar que, naquelas peças, o historiador Andrade – menos famoso conceituado – superara Diogo do Couto. Ademais, uma parte importante do ensaio visa, repetidamente, mostrar que a escolha do assunto confere a cada História maior ou menor força, vigor, intensidade, grandeza e, mesmo, eloquência. Saraiva começa por defender que, tal como a Epopeia e “ainda mesmo” a Tragédia, a História (não se tratando de Anaes) deve ter também um só assunto e um só fim, dos quais partem os
acontecimentos subalternos que tiverem conhecida dependência do argumento primário, e aonde se haja de dirigir a soma da moralidade que resultar de toda a exposição dos factos, para formar uma totalidade expressa, ou ideal, que instrua e também deleite. Isto se estriba na razão.
Vemos aqui, tal como já víramos em Villemain, que a “moralidade” é uma componente estética fundamental. Ela cumpre a definida função de assegurar a unidade do texto, porque subordina todos os motivos (principais e secundários) ao tema, tal como nos contos tradicionais e nos sermões da Missa. Por isso também, garante a sugestão de uma realidade mais profunda e alongada no tempo, na qual o episódio narrado fica inserido já com rumo concordante, em parceria com outros no decurso dos tempos. Assim se assegura o efeito holístico, ou de “totalidade”, bem como a idealização. A razão, naturalmente operando sobre a experiência (que alimenta a nossa capacidade de antecipação), certifica-nos que tal efeito, simultaneamente instrutivo e grato (de deleite estético), não falhará seguindo este critério de composição.


Em concordância com as preocupações estéticas (assumindo agora o termo a nuance percetiva que teve no seu começo), apela a Aristóteles e à Poética para lembrar que o assunto não deve ser muito extenso nem muito reduzido. Não se trata de uma preguiçosa tendência para o meio termo. Como se sabe, por causa do teatro, na Grécia antiga a duração máxima estava calculada (quando não a da peça, a de cada episódio). Uma duração mínima não chega para constituir a sugestão completa que se pretende, uma extensão demasiada esgota a nossa capacidade de atenção. Daí é que vem o dizer-se que “não deve ser muito extenso nem muito reduzido”, embora também não se determine com maior especificidade o limite.

Em seguida parte o ilustre retórico para as diferenças entre a “unidade de argumento” na História e na Epopeia. Nesta se imita uma ação conveniente num dado espaço e tempo; naquela
a vida toda de um herói ou personagem distinta é quem faz a unidade, não só de assunto mas até mesmo de tempo e de lugar: de maneira que na epopeia estas três unidades são singulares; na história coletivas.
Na epopeia a narração é “artificial” e na história é “natural”, pois “segue a sucessão temporal” (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 12-13). Na Epopeia, os factos antecedentes e subsequentes ao assunto principal constituem “episódios” no “artefacto mental” (estrutura, diríamos hoje); na História são “antecedências ou consequências naturais, como motivos ou resultados”.

Prega ainda o “artifício e suavidade por meio de algum preparatório, de maneira que o salto [de um para outro lugar] se faça com insensibilidade possível” (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 13), ou seja, sem que se perceba.

No cp. II trata da extensão. De certa forma abordara o tópico ao se referir à necessária duração mediana dos textos. Lembra que a extensão não se deve só ao tempo abrangido, mas também à “complicação dos acontecimentos” e à sua verosimilhança. A História de Portugal, por ex., não poderia ser resumida como a dos romanos por Salústio ou por Tácito nos seus exórdios (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 14).

No cp. III fala “da grandeza e dignidade moral dos [...] heróis”. Lembra-nos que a “grandeza de alma é a essência de um herói” (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 17). Na verdade, ele aqui desenvolve, ou pormenoriza, ou mesmo aprofunda a problemática do “assunto”, porque, no caso das duas peças que se comparam, o “assunto” coincide com o protagonista. O herói de Andrade seguira para a Índia já buscando sê-lo; o de Couto foi “herói por casualidade” (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 18).

No cp. IV fala “do interesse das duas histórias”, mas também da importância do interesse nas histórias em geral. Uma vez mais estamos em presença do desenvolvimento da problemática do “assunto”. Assinala que, sendo “a verdade o único objeto da história, a utilidade é quem deve formar o seu principal interesse”. Assume uma posição pragmática: quando “não existe a utilidade […] apaga-se a vontade de ler.”. Isso acontece porque, numa coincidência com teses liberais, entende que “o interesse é um afeto e o primeiro móbil de todas as ações do homem.” (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 28)

Diz ainda que “há também outro género de interesse”, parcialmente partilhado com a poesia. Trata-se do interesse motivado pelas virtudes do discurso. Por um lado, à História convém que os acontecimentos sejam importantes, a sua importância medindo-se pelas consequências que tiveram; por outro lado, recorre à Retórica numa espécie de ponte, aliás concorrida na época, entre a História e a Poesia:
não só dos factos procede o interesse da história, mas também da disposição deles, da pintura dos afectos, das reflexões e da elegância do estilo. Já fica dito que a grandeza dos factos e a importância deles faz o interesse principal da história.
Quanto ao resto, importantíssimos restos aliás, “o interesse que se funda na disposição dos acontecimentos” (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 29) depende de se narrar
o que só deve ser narrado, sem que se veja a narração obstruída com factos de pouco momento, que longe de aclarar as grandes circunstâncias, debilitam o crédito e diminuem o interesse. Nesta parte não conheço historiadores mais completos do que Tucídides, Salústio, Tácito, e Barros entre nós.
Destaca Tácito (“não têm os antigos nem os modernos modelo mais perfeito que Tácito” (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 30).

Quanto ao estilo, “é o colorido das ideias” (conceito neoclássico típico, mas ainda praticado no Romantismo). Nem por isso deixa de ser fundamental (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 30):
sem estilo não pode haver obra boa ou interessante, por mais bem pensada que seja. Se o da narração histórica for claro, e ao mesmo tempo breve, será o mais perfeito e o mais adequado ao assunto.
Para fazer isso convém que o historiador conheça bem a língua (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 30):
Conhecendo pois a índole da sintaxe em geral, e o valor das vozes em particular, pode com facilidade formar combinações expressivas, cuja energia sobressaia tão vivamente, que nelas se mostrem com a maior evidência os carateres físicos e morais dos personagens que deverão representar no imenso teatro da história e que hão de concorrer para a instrução de todos os séculos [sublinhe-se a palavra “todos”, mas ainda mais o critério da vivacidade, chamemos-lhe assim: “energia”, “vivamente”]. Sem ser tão difuso e poético como Heródoto, nem tão austero como Tucídides, seja um Xenofonte. Sem se ostentar orador pomposo como Lívio, nem tão florido como Cúrcio, seja um Salústio, seja um Tácito, Tácito o mais perfeito historiador da Antiguidade: Pindarum quisquis studet aemulari! [3] Breve nas descrições, judicioso nas sentenças, profundo nas observações, cheio de majestade e força, sempre vivo, sempre animado, sempre instrutivo, puro, claro, elegante; tal será o estilo do historiador sublime

(e sublinhe-se a palavra sublime). Na p. 36, ainda no mesmo capítulo, reafirma: “pode uma obra ser mal dirigida, mal pensada, e merecer grande apreço pelas graças da elocução.” Ainda na mesma página, e na seguinte:
um estilo excelente requer tantos requisitos, que o seu merecimento não é inferior ao da invenção. Não é só minha esta opinião. Cícero, e ainda Aristóteles não deixa de assentir a ela. Pode-se ver a este respeito o belo e judicioso prólogo da Marianne de Voltaire, onde se expendem as mais excelentes regras do bom gosto nesta matéria. […]O estilo deve estar, claro, adaptado ao assunto: um estilo doce, fluído e mole não fica bem na descrição ou narração de uma batalha.
 O cp. V trata “Dos caracteres”. Marcando a modelação intrinsecamente artística do historiador, o capítulo começa focado nos poetas:
Um poeta que não entra no número dos versificadores, um poeta sábio, um verdadeiro poeta na estrutura[4] de uma epopeia, de um drama, ou de qualquer outro poema de avultado corpo põe todo o cuidado na escolha dos carateres os mais articulados, e deles forma contrastes os mais expressivos para dar grande força de claro-escuro à sua pintura.[5]  
A pintura dos carateres é fundamental em poetas e historiadores – ainda estando estes presos à verdade. Mas a natureza humana é de tal forma que a verdade nunca se torna monótona, incaraterística. Essa pintura tem pelo menos dois passos importantes: o primeiro é a escolha dos carateres; o segundo a formação dos contrastes “para assim deleitar e também instruir, e por fim de tudo ficar eterna a sua obra nos aplausos da fama” (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 39). Esses contrastes deverão ser “assaz relevantes e sensíveis” (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 40) e, apreciados pelos românticos, eram já canónicos desde Zurbarán (1598-1664). Deve então o historiador, como o poeta, estudar a sua personagem para não deixar
escapar o mais leve contorno, mácula ou feição, isto é, todas as propriedades e oscilações morais e físicas, se a ocasião o pedir, e atando-as entre si por um nexo muito natural e artificioso[6], forme e aperfeiçoe o seu quadro, não com tão demasiada diligência como Paterculo [...], mas com a energia[7] de Salústio e Tácito, cujos quadros neste género, sem ter a afectação de Veleyo, conservão toda a delicadeza com que este grande artífice se faz nisto recomendável no mundo literário.
A razão da importância dos carateres na História deriva também de, pela expressividade do seu retrato, se conhecerem “as causas de muitos acontecimentos” (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 40). Isto parece uma antecipação da História romântica, centrada na biografia, mas na verdade essa corrente (que explica e instrui pelos carateres em jogo) vinha já da Antiguidade clássica greco-latina, só que se reforçou e reavivou com o Romantismo europeu.

Ao fundo da p. 49 começa o cp. VI, relativo às “sentenças”, que traduzem
aqueles pensamentos elevados, que em âmbito resumido de expressão lacónica e viva encerram alguma máxima política, ou moral conducente à instrução.
Tira de Quintiliano o epíteto “lumes do discurso” para tais sentenças, que “em nenhuma parte são mais convenientes do que na história”, porque no “mar imenso de tantos acontecimentos” elas servem de guia para “a verdade” (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 50). A propósito disso, regressa à tábua de comparação típica dos neo-clássicos:
Heródoto deleita pelo recôndito das notícias, que não devem ser tão reputadas por fabulosas pelo sábio que estuda a antiguidade e a natureza como filósofo, e pelas graças do estilo. Tucídides tem sumo apreço pela veracidade, e muito mais pela velocidade da narração, que raramente deixa de expor aquilo que deve. Xenofonte agrada pela simplicidade e pela elegância do estilo. A Tito Lívio deram glória imortal o artifício da narração, a eloquência e a elegância. César sempre será modelo de simplicidade e de pureza de estilo. Isso não obstante, quem não dirá que a profundidade de Tácito só por si instrui mais do que todos aqueles grandes historiadores? As reflexões e as sentenças são frequentes neste mais do que em nenhum dos mencionados escritores, porque também é o mais sábio e o mais profundo de todos.
Reforça na página seguinte:
As sentenças, digo, e as reflexões com que Tácito acompanha a veracidade da sua narrativa são certamente quem estabelece toda a solidez do relevante merecimento das suas histórias, só feitas para génios profundos e meditativos, só feitas para o estudo, e as outras para a curiosidade.
Com prudência, logo em seguida avisa:
não é meu intento aprovar o excesso da sentença. Muitos escritores do século de seiscentos fizeram tal abuso dela que puseram em descrédito o estilo sentencioso.
Impõe-se, isso sim, a junção do filólogo e do filósofo no crítico, tal como a junção do deleite e da sentença no estilo (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 51):
Rapin, e outros muitos filólogos não foram nesta matéria conduzidos pelas luzes da filosofia. Não se portaram assim o sábio d’Alembert, e outros escritores cuja crítica purificada pelas luzes da razão vingou o merecimento de Tasso das injustiças de críticos menos iluminados, que em desprezo do principal davam mais valor ao acessório. Convenho que o merecimento de Tito Lívio é do maior vulto, que ele sempre há de agradar, e Tácito sempre há de instruir. A maneira daquele deleita em extremo, a deste ensina e faz o leitor atento e sensato.
A sentença quer-se rápida e colorida (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 52-53), o que só se consegue se for certeira. Portanto, procurar a expressão exata para a conclusão incontornável é o trunfo e a garantia das duas grandes virtudes estéticas da “sentença”: rapidez colorida.

Na p. 55, perseguindo este equilíbrio entre a rejeição das “agudezas” e a elaboração das sentenças, vai contra os críticos que veem em “grande parte destas sentenças e ditos proveitosos agudezas, ou pensamentos guindados e muito exquisitos”. Em seguida nos diz como avaliar os conceitos e as sentenças:
em primeiro lugar, ninguém pode cabalmente julgar de um pensamento ou conceito relevante, se não se achar nas mesmas circunstâncias de afeto ou de interesse que o autor que as produziu, que senhor do seu plano vai deduzindo as ideias, segundo a sua analogia mental, às quais dá o colorido de expressão conforme o grau de efervescência[8] em que se acha o seu espírito, e de que só ele pode dar razão
– daí que o crítico não possa julgar sem conhecer bem a “maneira de inventar, de pensar, de comparar, de raciocinar, de unir e de expressar” e os motivos do autor e sem se igualar a ele em tudo isso, incluindo nos sentimentos originais (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 55):
Pode acaso uma alma fria, débil e sem energia avaliar como deve as propriedades de alguns conceitos e expressões sublimes [...]? Daqui vem também a impossibilidade de um autor emendar obra alheia. Daqui vem a injustiça com que alguns escritos, aliás dignos de apreço, são tratados [...].
Parece que hoje nos esquecemos disso e, como se soubéssemos tudo, acreditamos ser críticos tanto mais eficazes e certeiros quanto mais frios e sem energia. Sem calor humano não se atinge a grandeza. Ora, “há escritos que só podem ser avaliados por homens grandes” – é outro corolário (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 56). É, aliás, o grande corolário
que Cícero ajuíze de Demóstenes, Horácio de Píndaro ou de Homero; que Tasso louve Camões, e Voltaire sonde Cornélio, o grande Cornélio [...] porque ninguém pode formar juízo de qualquer obra com acerto se nunca se achou em iguais situações.
Note-se como subjaz a isto uma teoria do conhecimento, aristotélica na origem (o homem conhece imitando: logo, conhece por analogia), mas que se combina perfeitamente com o Romantismo. Note-se, por último, a coincidência deste preceito com o de Hegel quando, na Estética, nos aconselha a ter uma vida rica, variada, para sermos veementes e convincentes.

O cp. VII é dedicado à “moral” dos escritos históricos (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 56-58) e o seguinte à “utilidade” (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 58-60). Diz, claro, que ela é mais importante que o deleite (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 59):
Isso mesmo nos obriga a dizer que, sendo Tito Lívio pela eloquência e pela dicção o mais brilhante historiador latino, não deve ser lido senão depois do ânimo formado pelo estudo da filosofia da razão.
Observa-se aqui, tal como em outras passagens, a sombra do iluminismo e do racionalismo do fim do século XVIII, que visava equilibrar os entusiasmos momentâneos. Essa é a fronteira com que se marca o limite para a adaptação dos preceitos da Eloquência aos valores estéticos do Romantismo.


A parte II é dedicada à “narração histórica” (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 61). Justifica-se o seu “particular exame” pela “dificuldade” que ela comporta. A narração histórica deve começar pelo exórdio, pois assim acontece com “quasi todos os mais famosos historiadores” (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 61). E segue uma lista:
os gregos exordiaram com belo artifício, e o mesmo fizeram os latinos, merecendo no meu conceito a primazia Tito Lívio e Tácito. Este, usando de uma maneira nova e sumamente artificiosa, oferece por exórdio um quadro da história anterior à época donde começa a narração, o mais resumido que jamais se tem visto até aos nossos dias. Os exórdios de Salústio na história da conjuração de Catilina, e na de Jugurtha, parecem desproporcionados; contudo são tão cheios de dignidade e decência filosófica, que desculparia defeitos muito maiores se os tivessem.
João de Barros, por sua vez, exordia de modo “claro, elegante e cheio de interesse” (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 61).

Em seguida vem a narração propriamente dita (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 62):
A narração, que em todos os géneros deve ser clara, breve e elegante, na História deve não só conservar estas mesmas qualidades, mas também grandeza conveniente ao assunto.
Também aqui o conceito de velocidade ultrapassa a das mulas: “nada de estranho deve demorar o seu progresso”. A narração quer-se, ainda, natural (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 62):
como toda a narração deve ser verosímil para ser clara, esta verosimilhança, esta perspicuidade não podem existir na narração histórica sem que os factos sejam motivados; daqui vêm as digressões, as quais nunca devem entrar na narração histórica senão para expor as causas de acontecimentos, que sem aquelas ficariam vacilantes na crença do leitor.
Note-se que é exatamente o mesmo que pedem a verosimilhança da narrativa artística e a necessária atenção para os limites do interesse e da disponibilidade dos leitores. Também concorre para a brevidade que se deem as causas só dos acontecimentos “de que especialmente se trata” – e cita a propósito Quintiliano, “De institutione oratoria, liv. 4.º, cp. 2.º” (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 63). Prossegue, na mesma página ainda:
Contudo, a cair em algum defeito, antes seja por excesso que por falta; no primeiro caso, ainda que com tédio, sofre-se o supérfluo; no segundo tira-se o necessário com prejuízo. E por isso, continua o mesmo autor, deve-se evitar aquela brevidade salustiana (que nele deve-se reputar beleza), e também o seu estilo desunido [.../...] Não deve pois esta brevidade ser despida de ornato, por não parecer rústica.
A brevidade contribui para a clareza (como nas seis propostas para o próximo milénio ...de Calvino). A clareza, diz ainda nessa página, 
na narração histórica não consiste só na verosimilhança dos factos naturais e possíveis, mas também nas palavras, que devem ser claras e significantes; daqui vem a necessidade de ser elegante. A elegância anda mal entendida: comummente a elegância significa ornato frívolo e ocioso.
De onde parte para uma conclusão surpreende e elucidativa até para escritores atuais:
a utilidade é quem faz a beleza e o merecimento principal de qualquer obra. Quando a utilidade se anuncia com perspicuidade em qualquer género de escrito, esta operação não se pode fazer senão pela escolha rigorosa dos termos mais insignificantes dispostos com a mais legítima congruência gramatical da língua em que se escreve. Eis-aqui a elegância. Desta feliz combinação da utilidade com a clareza nasce o merecimento da obra
…de qualquer género (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 63).

A par destes cuidados, o autor surpreende-nos de quando em quando com curiosas e pertinentes observações. Por exemplo na p. 61: “sendo pois a narração histórica uma exposição de factos sucedidos, ou que poderiam suceder” (e daí nos remete para uma nota – nota 4 – que nos atira para Cícero no 1.º livro do De inventione). Chamo-lhe curiosa porque me parece estatuído, nessa época e já desde Aristóteles, que a História narra os factos enquanto a Poesia fala do que podia ter acontecido. Abre-se de repente uma janela para uma História conjetural, em que a imaginação guiará a hipótese. Abre-se portanto uma janela de futuro.

Na p. 64 lemos outra curiosa afirmação, referente ao nível da linguagem: 
cultura no estilo é o uso congruente de qualquer termo ou frase mais seguidos pelos sábios dotados de bom gosto. A palavra cultura significa asseio. Uma voz antiquada, ou que só é usada da plebe ignorante, parece sórdida e enxovalhada pelo uso, que esta é a força da translação a que se refere a palavra cultura.
Se, por um lado, se afasta a palavra popular, por outro se afasta a palavra antiquada – como preconizou também António Pereira e o veremos mais adiante. Neste segundo aspeto o Romantismo, sobretudo a partir da segunda geração romântica, veio desenvolver-se com toda a legitimidade no Brasil, afastando-se de termos antiquados. Em Portugal, os poetas da segunda geração romântica (João de Lemos à cabeça) procuravam, por outro lado, reter ou reanimar os termos antigos e populares através de uma sintaxe e de uma cultura que lhes trouxesse a elegância perdida sem sair do estilo humilde ou do vernáculo. Resultou, porém, forçada (se não rançosa) a maioria das vezes.

Durante as citações anteriores parece que Francisco de São Luiz quase não toca na harmonia. Não fique o leitor com tal ideia. A harmonia, também importante para a clareza, foi considerada por ele: “é uma feliz combinação de vozes dispostas com artifício, não para servir unicamente ao deleite” (permanece portanto subjacente o critério económico ou da utilidade, mas também o da ligação à filosofia).


No cp. I desta Parte II centra-se o ensaio no tema “Da velocidade da narração destes dois historiadores” (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 65ss), que remete para um tópico pertinente, como disse. A velocidade é (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 65) 
uma das qualidades mais estimáveis da história, como aquela que expondo aos olhos do leitor uma série de factos não interrompida, vai sempre cevando a curiosidade e o interesse, que não se afrouxa nem se esfria com a interrupção de factos estranhos.
Ainda hoje é assim, por exemplo nos guiões de cinema, particularmente o norte-americano.

Na parte II, a «disposição dos factos» organiza-se sob a mesma alçada da utilidade, reafirmando-se a importância da cronologia: “parece que na história não deve haver outra disposição que não seja aquela que oferece a ordem dos tempos.”
Apenas uma ligeira mas importante inflexão, por assim dizer artística (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 66): 
a boa razão aconselha que a colocação dos factos históricos tenha algum tanto de artifício, havendo de inserir com preferência no corpo da narração aqueles que mais relevantes forem; e desenvolver mais articuladamente os seus motivos; dispondo como em epítome coletivo os factos menos consideráveis. V. g. em Tito Lívio o combate dos Horácios [...] são representados com muito maior e mais articulada expressão do que o comum dos factos ordinários. Deste modo consegue o historiador de génio dar força de claro-escuro ao seu quadro.
Quanto às ameaçadoras e perigosas “digressões”, a receita estava já bem definida antes, pelo que o crítico apenas a aplica às obras em causa, mostrando como não devem distrair-nos nem adormecer-nos.
Quanto aos “costumes”, ele diz que também são muito necessários à História, contribuindo para a sua moralidade, o que abre espaço para uma historiografia etnográfica de todo vantajosa no nosso meio. Mas, na p. 72, começa talvez o mais interessante capítulo, o V, “dos Afectos”, que vem reforçar o peso já dado às emoções no início do texto:
é a pintura dos afetos o maior predicado do homem de espírito, tanto na poesia, como na eloquência, pela grande dificuldade do desempenho nesta parte.
As
altíssimas comoções a quem devem a existência as mais raras produções do génio, sendo muito próprias destas, não são alheias da história, a quem dão o mais distinto realce, não obstante serem ali empregadas com moderação filha da inteligência, mais conduzida pela razão, que excitada pelo entusiasmo.
Realçando os afetos ele aproxima-se, aparentemente, do Romantismo, tanto mais que deriva as obras geniais das mais fundas turbações… Mas, pelo menos saltando para a História, os afetos precisam de ser moderados pela razão, portanto a emoção original parece dar só o combustível, não garantindo o piloto. Simultaneamente aproxima e separa História e Poesia (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 72-73): 
a história deve-se reputar como uma coleção de assuntos heroicos, trágicos, cómicos, elegíacos, e até mesmo satíricos, cada um dos quais deve ali ter em resumo as mesmas propriedades que se desenvolvem com toda a extensão quando são tratadas pela poesia. Então é que o historiador, mudando de tom e deixando o andamento uniforme de uma narração desapaixonada, desata o voo, remonta-se, dá variedade ao discurso, e observa as decências do género subalterno ao assunto principal.
O historiador há de, nessa altura (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 73), “desenvolver aquela filosofia do génio que estudando o coração humano observa os movimentos da alma, que retrata na expressão”. Estamos, outra vez, muito próximos do que Hegel prescrevia ao poeta na Estética. No entanto, mais uma vez, os dois melhores exemplos, na antiguidade greco-latina, são Tito Lívio e Tácito (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 73)
As paixões no primeiro são expressadas com suavidade, no segundo com fortaleza própria de uma alma forte e de um espírito verdadeiramente filosófico.
Sublinhe-se, novamente, a importância do “espírito verdadeiramente filosófico” para que a expressão das emoções alcance propriamente o Sublime. Completa mais adiante (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 75), referindo 
uma crítica filosófica e luminosa, tal como a […] com que Voltaire analisou as melhores passagens do grande Pedro Cornélio, criador da trágica francesa.
Passa depois às descrições  (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 79):
as descrições na história não são, como querem alguns, para ornato dela e divertimento do leitor [.../...] Para ilustrar a inteligência é que as descrições costumam ser admitidas na história. Elas aclaram circunstâncias e avivam o interesse. Elas dão peso e valor aos acontecimentos, assim como as de Lívio, Salústio, e Tácito principalmente, que nunca as introduz senão com necessidade, evitando todo o género de afetação em que frequentemente caiu Quinto Cúrcio.
Exatamente o mesmo conselho serve, sem dúvida, para a narrativa literária e, como em Joaquim António de Carvalho e Menezes, para aquela mistura de História iluminista e programa político que foram a Memória e a Demonstração. Justamente ao fazê-lo, com a ênfase que põe tantas vezes no “género deliberativo”, quase tanta quanto no “demonstrativo” (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 93-94), o nosso político e historiador empresta o tom polémico (no sentido próprio da palavra) ao seu texto. Repare-se que, nele, como depois ainda no Romantismo, o “deliberativo” não era, propriamente, aquele que Francisco de São Luís exemplificava na História grega e latina. Aí, são as personagens (os chefes, em geral protagonistas do episódio) que discursam (em geral às tropas, ou para uma assembleia); como discursam para que a assembleia tome deliberação, ou para reforçar e explicar ao exército uma deliberação que todos devem sustentar até à morte (evitando a deliberação de desertar…), incluem-se essas falas no género deliberativo quando se considera a retórica da História. Mas o sentido aristotélico é mais inclusivo, por um lado, e mais preciso por outro, pois ele define o deliberativo como o discurso orientado para que os recetores tomem decisões. É o que fazem Carvalho e Menezes e, também, Manuel Patrício Correia de Castro. Neles o enunciador se coloca discursando para deliberação, como se estivesse em um conselho ou em uma assembleia (que é o mercado do livro). Também demonstram, de resto não se propõe deliberação sem demonstração na boa retórica. Mas o deliberativo, neles, estrutura o conjunto.

Assim entrei já no cp. VII, que trata “Da Eloquência Histórica e das Falas”, o que não é pouco importante. O Cardeal Saraiva inclui a História no género demonstrativo. Subentendidamente, o deliberativo tem nela parte. Mas a “relação histórica tem por base a exposição de factos positivos”, o que para ele implica “nada” possuir de “conjectural” (entrando em contradição com o que atrás dizia), pelo que “o pretérito lhe fornece assunto”, de onde se segue que (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 93) 
o louvor e o vitupério hão de ser as suas propriedades intrínsecas [...] despidas daquele tom hiperbólico que com tanta pompa se costuma anunciar no panegírico.
Porém, no sentido em que vejo o deliberativo em Carvalho e Menezes e no Romantismo em geral, “o louvor e o vitupério” são mais do género deliberativo do que do género demonstrativo (na verdade, não demonstram). Leia-se, de passagem, o longo panegírico do governador Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho e logo se confirma o que digo. Repare-se, aliás, no facto de Carvalho e Menezes elogiar o govenador sem cair no “no tom hiperbólico” e na “tanta pompa” referidos pelo retórico português.

Na página seguinte fala o Cardeal das vantagens e desvantagens de introduzir a eloquência deliberativa,
como vemos praticado com tanto esplendor pelos antigos, que introduziram nas suas histórias falas, muitas das quais são reputadas prodígios de eloquência, como na história da guerra do Peloponeso de Tucídides, em Tito Lívio, Salústio e Tácito.
Diz que o método tem sido “aprovado e repreendido”, criticando-o os que acham que a eloquência é para os oradores e a história para contar “factos” e “verdades” – o que acha irrepreensível. Os que elogiam dizem (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 94) que
a maneira de Tucídides, Lívio, Salústio e Tácito é a mais bela, a mais animada, e cheia de movimento; o tom dramático que ali se mostra, não só não se opõe ao verosímil, mas serve ao mesmo tempo à instrução e ao deleite, que de nenhum modo pode resultar da uniformidade fastidiosa de uma narração seca e sem movimento, como a de Políbio e César, postque autores estimáveis, um pelos factos e pelas reflexões políticas, e outro pela pureza do estilo.
Critica, na p. 95, os historiadores modernos, “com que a facilidade do prélo tem inundado a Europa” (imagine-se a comentar a Internet e a massificação dos ensaios académicos), monótonos, sem tom dramático nem vivacidade (excetuados Palavicini, Voltaire e Barros). Se escrevessem como os antigos, que ainda hoje são lidos apesar de escreverem em línguas difíceis,
a leitura da história escrita neste gosto excitara, ou por melhor dizer, determinaria à eloquência os génios que para ela tivessem decidida inclinação: assim como aconteceu a Demóstenes, a quem o estudo de Tucídides formou orador.
Tenho reparado como trata bem o génio, como a teoria do génio, tão romântica, se vem preparando aqui, tanto quanto em outras passagens do Iluminismo e do proto-romantismo franceses. Isso passa para a p. 96, onde afirma, na sua lista longa de exemplos nada inocentes, que o “grande orador Vieira, especialmente no prodigioso sermão contra as armas de Holanda, nasceu da lição de Lívio e Salústio”.

Passamos depois para a “clareza do estilo” (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 106ss). Parece-lhe óbvio, de senso comum, que a “perspicuidade” é “a primeira e a mais necessária virtude do estilo”. Diz que são “as palavras a pintura falante do que sentimos dentro da nossa alma informada unicamente pelos sentidos” (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 106), numa perspetiva que parece romântica e sensualista. Logo temperada, porém: para se ter clareza de espírito é necessário “primeiramente estar o entendimento bem informado do assunto”, por um estudo aprofundado da sua “natureza”, “caráter” e antecedentes (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 107) – estudo que, naquele tempo, seria considerado filosófico.

Em seguida a clareza resulta do tratamento dado às palavras (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 107), 
que é onde jaz a principal perspicuidade no discurso; elas devem ter um significado positivo, isto é, significação inerente a cada palavra, quando são tomadas em sentido reto ou primitivo; mas quando tomam significado translato, as significações figurativas devem ser naturais e de fácil inteligência: da mesma sorte a combinação das mesmas palavras deve ter união natural e congruência gramatical de modo que o seu sentido fique de fácil perceção.
A maneira mais fácil é usar palavras “próprias” e a “ordem natural do discurso” (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 108). Seguindo “a ordem natural do período”, mesmo com palavras “translatas” (mas de fácil apreensão), 
convém que em primeiro lugar o sujeito de cada proposição se anuncie expresso, ou se subentenda facilmente; que não esteja muito distante do eixo da oração, que subsiste no verbo [...]
Que a conclusão ou a proposição que determina o sentido total do período não esteja muito distante. Que o período não seja tão extenso que não possa ou custe a entrar na inteligência do leitor; nem curto tanto [...] que lhe falte o que convém para ser entendido, porque para haver clareza convém que ao período nada falte nem sobeje. Que a proposição principal não seja interrompida de proposições intermediárias, ou muito extensas, ou muito frequentes, e que se deduzam umas de outras.
Carvalho e Menezes, que sublinhava não ser escritor e dizia carecer de elegância, nem sempre respeitou estes ditames, em particular no que respeita às “proposições intermédias”. No entanto, se algumas vezes abusa da intermediação de proposições, elas incluem-se num procedimento estilístico previsto, o da enumeração para, no fim, rematar com uma conclusão por ela sustentada. Infelizmente é porém comum, em Carvalho e Menezes, a composição de parágrafos longos, onde se entulham orações intercaladas que nos fazem esquecer o começo e a linha de raciocínio. De resto, esse traço, vemo-lo ressurgir muitas vezes ao longo da nossa história cultural urbana. É um facto que ainda David Mestre, mesmo Ernesto Lara Filho, nas suas prosas, embora com a mestria que lhes assiste, escreviam frases e períodos demasiado longos para os conselhos retóricos e sensatos que lemos aqui.

Na mesma linha da citação anterior, convém, segundo o Cardeal Saraiva,
que não seja a oração cortada de parêntesis frequentes ou muito extensos. Que os possessivos se não ajuntem de modo algum com genitivos a que se possam referir [refere-se a construções do tipo seu dele e seus deles].
Também é de observar (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 108)
que as conjunções sejam bem dispostas, de modo que nem por frequentes se atropelem, e embaracem a clareza, nem por diminutas façam o mesmo prejuízo à oração, por falta do nexo, que ligue as suas partes. Que não haja transposições frequentes, nem fora do natural, que degenerem em hipérbatos.
Deve finalmente “o escritor ter um grande uso de meditar, de raciocinar, segundo a norma da mais luminosa dialética” (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 109) – e aqui nos reaproximamos da disciplina filosófica.

Trata, em seguida, a “brevidade da expressão”, que (também) “é talvez a mais preciosa virtude do discurso” (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 113). A receita é, basicamente, a mesma: não dizer de mais nem de menos e, se possível, dizer muito em pouco, muitas ideias em poucas palavras, deixando o leitor a pensar. Ainda nos assegura que os escritores antigos, por suas línguas, é que sabiam fazer isso, que é dificílimo nas atuais.

Posto o que, passa à “pureza do estilo” (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 119ss). Esta não “consiste tão somente no uso das palavras adotadas e estabelecidas no idioma”, funda-se antes (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 119) 
a pureza da dicção na observância mais congruente das leis da gramática ou sintaxe propriamente filha da analogia do idioma em todas as suas partes.
Parte, mais adiante, para a “cultura do estilo”, que “consiste nas palavras e fórmulas que mais se acham em uso”, não abusando de termos antigos (mais uma vez) e evitando frases obsoletas (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 121). De onde segue para a “elegância” e “harmonia do estilo” (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 124ss).

Começa por dizer que, 
sendo as palavras a pintura enunciativa das ideias, dos pensamentos, e até mesmo das mais sublimes abstrações, para esse fim faz-se essencialmente necessária a escolha das vozes e fórmulas cheias de força e vivacidade.
Essa escolha deve ser dirigida “pela crítica e pelo gosto, que são verdadeiramente as leis da razão” (sublinhe-se, de passagem mas não de menor importância, esta perspetiva, hoje muito pertinente, segundo a qual a crítica e o gosto constituem as “leis da razão”). A elegância, conceito supremo de toda esta retórica, associa “vozes e fórmulas” através da “conveniência” e nela (elegância), “depois do pensamento, consiste o maior merecimento de qualquer composição literária” (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 124):
O pensamento é a invenção do quadro, a elegância, o colorido [leia-se: o pensamento é a invenção do quadro; a elegância, o colorido do quadro]. Se à invenção, se à correção de Rafael se combina o colorido de Ticiano, tem a pintura chegado ao maior zénite da perfeição. Tal deve ser a norma do escritor que aspira à imortalidade. A invenção, a correção e o colorido de Cícero, de Virgílio e de Horácio, serão normas eternas a todo o escritor que com a maior ânsia aspira à perfeição.
Também aqui podemos ver como se foi transformando o uso das palavras “prosa” e “poesia” até chegar ao sentido romântico e atual das duas (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 127):
não só na poesia, mas também na prosa, é a harmonia de absoluta necessidade: sem ela será qualquer composição seca e desabrida. Ela facilita a leitura, e até mesmo auxilia a memória e a inteligência.
A harmonia tem “fundamento nas cadências estabelecidas e adotadas pela nação” (será que sem cadências próprias há nação? Será que os nossos poetas do século XIX pensaram nisso?). As cadências estão
depositadas [...] na poesia, nem pode absolutamente haver outro manancial mais certo, nem mais fecundo e determinado. Logo, para a prosa ser harmónica deve ser um composto de cadências poéticas ou de versos de diversas qualidades? Sem dúvida; mas tenho ouvido, e ainda mesmo lido, que é erro formalíssimo introduzir verso na prosa portuguesa. Se esta asserção é fundada no que dizem Cícero e Quintiliano, acho-a fora de razão,
porque na latina essa mistura não se dá como na portuguesa (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 127). Para o Cardeal, “a harmonia da prosa portuguesa é fundada na da sua poesia” (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 128). O modernismo destituiria esta máxima de todo o sentido, mostrando que, pelo contrário, os ritmos da poesia, se eram um repositório, eram-no de um tempo e de uma língua já velhos, sem correspondência nos ritmos atuais. Isso mesmo é que veio libertar, no século XX, os nossos escritores para aproximarem a linguagem escrita da linguagem falada pelo povo. Mas o ensaísta afirma também que “os Fénelons, e entre nós os Barros, os Coutos, os Vieiras e os Andrades” tiraram a harmonia das “suas qualidades sensitivas”, não ficando claro se seriam as sensibilidades deles ou as dos versos, pois aqui o retórico brilhante caiu num dos erros que denuncia, tornando ambivalente o pronome possessivo.

Diz ainda o Cardeal que dos retóricos “raramente se vê obra alguma de gosto” (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 128), o que sem dúvida os torna incongruentes. Acha também que este assunto “é mais para sentir que para analisar” (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 129), apelando novamente à sensibilidade do leitor. E garante que “não há escritor clássico português que tenha página sem verso”, sendo “o mais harmónico de todos” o P.e António Vieira – dá logo dele exemplos, escandindo a prosa em metros lusitanos (Saraiva, 1872-1883 pp. X, 129), ou seja, decompondo-a pelos paradigmas métricos da literatura portuguesa.






[1] Era ainda comum, na época, o sentido comum de política, do gr. politeia, o conjunto dos cidadãos (derivado de polis), que em latim se dizia polítia, governo. (Houaiss, 2009)
[2] Repare-se na escolha do verbo, que denuncia a precipitação típica de alguns escritores ingénuos.
[3] Citação de uma ode de Horácio (primeira estrofe: “Pindarum quisquis studet aemulari, /
Iulle, ceratis ope Daedalea / nititur pinnis, vitreo daturus / nomina ponto.” – trad. aproximada: “Quem aspira a emular Píndaro, Iullo, com asas modeladas em cera como as de Dédalo, vai dar o seu nome a um mar de cristal”). Apoiei-me na trad. de Steven Shankman feita em In the search of the classic.
[4] Repare-se na antiguidade e coincidência do uso de «estrutura» aqui e no século XX nos estudos literários.
[5] Técnica muito rentabilizada pelos narradores românticos.
[6] Note-se que o artificioso coincide com o natural – o que evita o artificioso bacoco, frívolo.
[7] O carater enérgico é outro dos traços queridos dos ficcionistas românticos, embora caracterize o herói clássico de forma geral (acho que não caracteriza Vasco da Gama).
[8] Repare-se que é já romântica esta visão da importância da efervescência interior para o colorido da expressão. Ela não contradiz a afirmação anterior (a de que esse colorido se garante pela exatidão da expressão e pelo rigor da conclusão), é a intensidade com que se vive o problema que sustenta a busca de resposta incisiva e indiscutível, que assegure de vez a solução.

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